O DISCURSO DE IDÁCIO DE CHAVES CONTRA AS HERESIAS CRISTÃS: UM
CONFRONTO POLÍTICO-RELIGIOSO NA PENÍNSULA IBÉRICA DO SÉCULO V
D.C.
Danilo Medeiros Gazzotti*
UNESP, Campus de Franca – SP
dmghistoria@gmail.com
Introdução.
Nosso artigo terá como enfoque o período da Antiguidade Tardia. Embora a mesma
abarque do século III ao início do VII d.C, nosso foco se dará especificamente nos séculos IV
e V d.C, em especial na região da Gallaecia, na Península Ibérica, onde Idácio de Chaves
exerceu seu episcopado.
Nossa proposta é de analisar e interpretar um documento, que é a crônica de Idácio,
portanto não podemos esquecer que estamos diante de uma interpretação de quem a escreveu,
ou seja, de um autor pertencente a um determinado grupo social da sociedade de uma
determinada época. Então antes de analisarmos sua obra precisamos entender o significado da
posição hierárquica de seu autor, um bispo niceno, e analisar o contexto histórico onde a
mesma foi escrita. Conforme nos diz Helena Brandão1 sobre a afirmação do discurso cristão
na Antiguidade Tardia romana:
A linguagem é o elemento de mediação necessária entre o homem e a sua
realidade, é lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser
estudada fora da sociedade [...] pois os processos que a constituem são
histórico-sociais. [...] Seu estudo não pode ser desvinculado de suas
condições de produção. (BRANDÃO, 2004).
"Acreditamos que os bispos fazem parte de um grupo social-religioso com interesses
próprios"
Chartier afirma que os grupos sociais criam suas representações do mundo social,
de maneira a impor seus valores. Essas representações, segundo esse autor, seriam tratadas em
termos de concorrência e de competições, cujos objetivos seriam em termos de poder e
dominação por meio de hierarquias. (CHARTIER, 1990, p.23).
No Concílio de Nicéia, o qual foi realizado em 325 d.C. no governo do imperador
Constantino I, houve um confronto político-religioso entre dois grupos de bispos, com
interpretações diferentes acerca do dogma trinitário. O concílio foi chamado pelo imperador
para superar divisões e divergências ocasionadas pela pregação do sacerdote Ário.
A doutrina
ariana questionava a consubstancialidade entre pai e filho e dizia que Jesus Cristo (Yaohushua) teria uma natureza apenas humana, contradizendo então a opinião ortodoxa que dizia que ele tinha duas
naturezas, a humana e a divina.
Durante o concílio alguns bispos estavam preocupados com a unidade da Igreja, e a
nosso ver a unidade imperial romana através da fé, e outros com a distorção do dogma e
doutrina cristãos.
Para preservar esta unidade a doutrina ariana foi considerada herética e Ário
e os bispos que a defenderam foram exilados do império.
Depois disso o concílio tomou como
dogma a profissão de fé proposta por Eusébio de Cesaréia, acrescido de alguns trechos a fim
de evitar qualquer ambiguidade por parte dos arianos.
A partir desta data os bispos que seguiam a doutrina oficial da igreja, passaram a se chamar nicenos, e tiveram como função promover a manutenção dos dogmas ortodoxos e o
combate a qualquer outra interpretação do evangelho, mantendo desse modo a igreja
unificada.
No decorrer do século IV outras interpretações foram aparecendo e sendo
confrontadas pelo grupo político-religioso ortodoxo. Dentre elas podemos destacar o
priscilianismo, uma interpretação católica fundada pelo bispo Prisciliano de Ávila a qual
ganhou muita força principalmente na Península Ibérica e que preocupou muitos bispos
nicenos, entre eles Idácio. J. Vilela nos dá uma pequena síntese da doutrina prisciliana:
Em outra ordem de coisas, como evidenciam " los Tractatus y los Cânones, a
conduta religiosa prisciliana consta, em sínteses, estes elementos: la
defensa del aceticismo – que se manifesta nol celibato -; na renuncia dos bens mundanos; abstenção de carne e do álcool e afastar-se da igreja durante os períodos de Quaresma...
Segundo Vilela, o priscilianismo é condenado como heresia no Concílio de Zaragoza
em 380 d.C., mas a ausência dos principais bispos condenados de praticá-lo evitaram uma
condenação mais firme. Durante os anos seguintes Prisciliano e seus seguidores tentaram em
vão defender sua doutrina.
Quando Prisiciliano chega à cidade de Trevéris em 384 d.C para
tentar convencer o Imperador usurpador Máximo a apoiar sua causa, ele é preso por Evóido,prefeito do mesmo, sob diversas acusações, entre elas o estudo de doutrinas condenáveis, ter
feito reuniões noturnas com mulheres de má reputação e rezar nu (VILELA, 1997, 527).
Sob tortura, Prisciliano acaba concordando com as acusações e sendo executado no final de 384,
início de 385 d.C. Mesmo após a morte de seu líder, o priscilianismo manteve-se em vigor
durante ao menos dois séculos mais, como o demonstra Vilela:
[...] Prisciliano será la figura carismática sobre la que se centra um largo
conflicto, resultado que se extiende por Hispania y La Gallia, y
particularmente por la Gallaecia, durante los últimos años del siglo IV y
primeira mitad del siglo V, cuyas prolongaciones alcanzan hasta mediados
del siglo VI. (1997, 529).