sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O apego ao dinheiro do homem na sociedade



Na procura de novos encantamentos, o ser humano vai pelos caminhos tortuosos do completo abandono ao chamado do dinheiro e do mercado — até mesmo quando pretende aproximar-se de Deus por intermédio da religião.

No princípio, Deus criou os céus, a terra e o homem, à sua imagem e semelhança. Não demorou para que este lhe retribuísse a gentileza, e logo adequou Deus aos seus próprios desejos e expectativas. Depois, apareceram o dinheiro, o capitalismo e, enfim, o chamado neoliberalismo. E ninguém nunca mais conseguiu viver feliz para sempre.

Este poderia ser um resumo simplificado da tese de um livro que acaba de ser lançado pela MK Editora, do Rio de Janeiro: "O Dinheiro e a Natureza Humana - Como Chegamos ao Moneycentrismo". É um trabalho que tomou sete anos do economista Ednaldo Michellon, um paranaense de 44 anos formado engenheiro agrônomo e que fez seu doutorado em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Universidade da Califórnia. Ele mora em Maringá, onde dá aulas na Universidade Estadual.
Michellon defende a idéia de que o mundo vive sob um regime em que o dinheiro ocupa o centro de todas as decisões e se tornou a medida de todas as coisas. Não mais o homem (antropocentrismo), como foi depois da Revolução Francesa e do movimento iluminista, não mais Deus (teocentrismo), como era antes disso. A imprevisibilidade da natureza humana e sua inclinação inata à cobiça adubaram um terreno já propício para que germinasse esse fruto. Enfim, o ser humano, antes no controle de sua condição social, acabou subjugado por sua própria invenção.

"O homem não está mais com Deus, como estava no teocentrismo. E o sonho de todos os ateus, cientistas e agnósticos, de que o homem seria a medida de todas as coisas, não mais se verifica, porque hoje a medida de todas as coisas é o dinheiro", disse Michellon ao Valor.

O economista vai além e afirma que a força do dinheiro é tamanha na sociedade pós-moderna que conseguiu subverter até mesmo aquilo que deveria funcionar como resistência a essa influência: a religião, ou, mais especificamente, o cristianismo da cristandade. A adoção de uma atitude mercadológica por parte das igrejas evangélicas neopentecostais minou o poder da mensagem cristã como instrumento de transformação da sociedade. E acabou por enfraquecê-la. Desapontados com igrejas que prometeram bênçãos divinas em troca de ofertas e não as entregaram, os fiéis acabam num segundo estado de desalento, bem pior do que o primeiro.

A análise econômica de Michellon está fundamentada, portanto, em princípios bíblicos e numa macrovisão espiritual - por isso mesmo, original, embora polêmica, do significado do capital. Pela primeira vez, poderia se dizer, misturam-se conceitos sócio econômico e de economia comportamental com verdades da religião cristã ocidental. Michellon afirma que não é socialista nem filiado a partidos políticos, embora tenha militado no movimento estudantil quando jovem. Como cristão evangélico, convertido aos 18 anos, ele conta que costumava ser alvo de preconceito, tanto dentro da igreja tradicional, por suas posições em defesa de uma sociedade mais igualitária, quanto na universidade, por ser cristão.

Michellon mostra-se indignado, em seu livro, com o grau de sujeição dos homens a um elemento que a maioria dos economistas considera "neutro". Para ele, o dinheiro não é neutro. Assume, sim, uma característica abstrata e de tal forma poderosa a ponto de exaltar todo aquele que o possui, ao mesmo tempo que exclui o que dele carece. O "moneycentrismo" - termo que Michellon criou para associar a raiz vocabular do fenômeno à sua abrangência internacional - ganha espaço amplificado a partir da queda do muro de Berlim, representação da derrocada das utopias socialistas e da supremacia do capitalismo e do neoliberalismo como maestros globais. O capitalismo é esse solo fértil onde germina bem "a banda podre da natureza humana", diz o economista. "A cobiça é inerente à natureza humana e a somatória de cobiças individuais resultou no capitalismo. O capitalismo acabou fazendo com que a cobiça seja uma qualidade, e não um pecado”.

A globalização reforça esse estado de coisas. A multiplicação do "dinheiro virtual" por meio dos modernos instrumentos de comércio e dos mercados financeiros "potencializa sua magia", afirma o economista. Ele observa que o dinheiro, em sua forma material, corresponde a apenas 8% de todos os dólares do mundo. O restante é composto meramente de números em um livro-razão ou minúsculos componentes eletrônicos em um chip de computador. "Por isso, a autonomização do capital, como valor que se valoriza, parece estar chegando aos extremos com a globalização financeira ora em curso, desvirtuando a capacidade racional dos homens”.

Na primeira parte de seu livro, Michellon interpreta três paradigmas econômicos: o do equilíbrio, o da dinâmica contraditória e o da instabilidade. É um resumo do pensamento econômico desde seu nascimento. Em seguida, vem uma análise da natureza humana, em que ele contesta noções sociológicas como a do mito do bom selvagem, de Rousseau, que diz que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe; ou a doutrina da tábula rasa, na qual o homem nasce como uma folha de papel em branco e pode-se escrever o que quiser nela. Para o economista, "todo ser humano é formado pelo mesmo hardware, mas em softwares diferentes. Todo ser humano é igual em qualquer lugar do mundo. Tive o privilégio de ter gêmeos idênticos. Eles têm o mesmo DNA, o mesmo ambiente cultural, mas são absolutamente diferentes", exemplifica.

Finalmente, o autor tenta propor uma nova maneira de lidar com a supremacia do dinheiro, para que se alcance o que ele chama de democracia solidária. Para isso, seria necessária uma segunda Reforma Protestante, um novo Lutero. Voltar aos ideais e à forma de viver singela e altruísta da igreja cristã primitiva. "A economista Rosa Luxemburgo chamava isso de socialismo primitivo", afirma Michellon. "É uma sociedade em que o ser é mais importante que o ter, o caráter é mais importante que o carisma e os relacionamentos mais importantes que a ética do desempenho”.

No Novo Testamento, segundo o livro de Atos, os primeiros convertidos viviam uma vida "comum", ou seja, em comunidade, e quem tinha demais vendia seus excedentes para ajudar os que tinham de menos. Mesmo simpatizando com essa abordagem, há quem ache prematuro afirmar que se vive o começo de uma era "moneycêntrica". É o caso do economista Eduardo Giannetti da Fonseca, que num ensaio de seis anos atrás observava: "Que a paixão pela riqueza e o obscurantismo do prazer estejam em alta no planeta, não duvido. Que sonhar coletivamente esteja cada dia mais difícil, como negar? Mas daí a acreditar que tudo isso seja um traço singular da nossa época ou possa ser atribuído às vagas explicações holísticas que embalam o sono ideológico de tantos há uma enorme distância”.

Para mostrar que o apego ao dinheiro é tema "tão perene quanto humano", Gianetti seleciona uma série de frases do pensamento clássico, “cristão” e moderno para ilustrar que não é recente "a paixão imoderada pelo dinheiro", nem "o culto do 'deus visível' que 'ata e desata vínculos sagrados, abençoa o amaldiçoado, doura a lepra, honra ladrões, faz a viúva anciã casar de novo' (Shakespeare, em 'Timon de Atenas'
Mesmo assim, a proposta de uma segunda Reforma parece atrair outros estudiosos cristãos que, como Michellon, enxergam hoje uma igreja acomodada e rendida a padrões mundanos. "Sobre o quê, ou contra o quê os protestantes protestam atualmente? O mesmo grupo que pegou em armas a favor do estabelecimento do Estado nacional e contra as investidas do imperialismo estrangeiro, sendo vanguarda na luta pelo fim do latifúndio e incorporando a luta pela democracia em diferentes épocas e lugares, hoje se notabiliza por qual luta? Ao menos no Brasil, o protestantismo, com raras exceções, está bem acomodado, bem mundano. Parece tranqüilo e feliz, desfrutando dos benefícios do presente e das glórias do passado", escreve, num outro artigo, Gedeon Freire de Alencar, mestre em ciências da religião e diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos em São Paulo. "Minha visão bíblica diz que quem eu sirvo determina o poder por detrás do dinheiro. Se eu sirvo a Deus, então Deus está acima do dinheiro. Se eu não sirvo a Deus, então o espírito que há por trás do dinheiro é chamado pela Bíblia de Mamom", afirma Carle Hunt, professor de negócios da Escola de Educação da Regent University, de Virgínia (EUA). Para Hunt, a influência de "Mamom" pode ser percebida não só nas igrejas, mas na mudança de foco de algumas das principais escolas de negócios do mundo, que começaram fundamentadas em princípios bíblicos e até como escolas de teologia, mas, com o passar do tempo, cederam a uma visão de mundo humanista. Ele cita como exemplos dessa conversão a Mamom nomes como Harvard, Yale e Duke University.

"Você olha para todo lado e vê as pessoas se rendendo à teologia do dinheiro. A teologia da prosperidade deveria ser chamada de teologia 'moneycentrista'. No Antigo Testamento, prosperidade era a saúde da família, do gado, das colheitas. A prosperidade tinha a ver com vida saudável. Hoje, prosperidade é poder consumir. Seria melhor chamar isso de teologia 'moneycêntrica"', sugere Michellon.

Essa vocação para dobrar-se a bezerros de ouro e conferir um aspecto sagrado àquilo que é material não é novidade. Está descrita já no Gênesis, no episódio em que os filhos de Israel provocam a ira de Deus e de Moisés ao se afastarem do ideal monoteísta, preferindo o palpável e o imediato. Para Ricardo Bitun, professor de sociologia jurídica e sociologia da religião na Universidade Mackenzie, o conceito de mercado entrou na religião ocidental “cristã” justamente porque assumiu esses atributos divinos. "Quando falamos do mercado, falamos assim: o mercado está agitado, está nervoso. Damos uma identidade e personalidade a alguma coisa invisível, mas que se faz presente e real. Ora, quem era invisível, mas real? Era Deus. Quem era infinito? Deus. Hoje, o dinheiro e o mercado é que dão essa sensação de infinitude”.

Bitun amplia, portanto, a noção "moneycêntrica" para uma "marketcêntrica", na qual quem orienta a vida é o deus mercado. Um exemplo disso, em sua opinião, é a valorização crescente de carreiras que conferem status e altas remunerações. "Quem orienta e vocaciona os jovens de hoje? O deus mercado. Na sociedade tradicional, você tem Deus orientando e vocacionando. Toda família tinha que ter um sacerdote ou se sentia honrada por ter um sacerdote. Hoje, você se sente honrado em ter um filho que é aceito pelo mercado”.
A única força que poderia voltar-se contra isso é a religião. E a religião deixou-se contaminar. "Essa resistência hoje foi minada principalmente por um grupo chamado neopentecostal, representado no Brasil, entre outras, pela Igreja Universal do Reino de Deus. ", afirma Bitun. [Procurada, a igreja preferiu não se manifestar, mas enviou um exemplar do livro "Vida em Abundância", em que o bispo Edir Macedo apresenta passagens bíblicas que prometem bênçãos materiais a todo o que crê.]

Na opinião de Bitun, esta é uma religião que prospera justamente porque prega a reinclusão das pessoas no mercado de consumo. "Elas dizem assim: se você entrar para nossa religião, vai poder comprar o carro do ano, comprar uma casa na praia, não vai morar mais de aluguel, não ficará mais endividado. Ao invés do confronto com o mercado, fazendo prevalecer a regra do amor, da comunhão, usa-se a religião para incluir no mercado. É uma lógica do mercado." Mas desse modo também se pode afastar os fiéis. Porque, na visão de Bitun, o ser humano está em pleno processo de busca pelo "reencantamento do mundo".

"[O sociólogo alemão] Max Weber disse que na modernidade há um desencantamento do mundo, o mundo místico se extingue e se volta totalmente à ciência. Hoje, as pessoas estão buscando o reencantamento. Estão voltando à religião, ao misticismo oriental, você vê o sucesso de livros como 'O Monge e o Executivo'. Isso faz parte desse reencantamento. As pessoas estão desejando isso, algo que fuja um pouco do racional”. Ao se depararem, dentro da igreja, com uma filosofia consumista, o resultado pode ser a desilusão. E um retorno ao que Weber chamava de "mãos gélidas e cadavéricas da ciência".

Para o professor do Mackenzie, uma segunda Reforma ou o retorno aos princípios dos primeiros cristãos seria uma forma de restabelecer utopias perdidas. "A grande utopia cristã é que haverá novos céus e uma nova terra. Essas igrejas chamaram essa utopia aqui para a terra. Por que esperar pela chegada do grande reino, pela segunda vinda de Cristo? Vamos realizar a utopia agora”. Na prática, é isso o que significa servir a dois senhores.
Marília de Camargo César

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