Na procura de novos encantamentos, o ser humano vai pelos caminhos tortuosos do completo abandono ao chamado do dinheiro e do mercado — até mesmo quando pretende aproximar-se de Deus por intermédio da religião.
No princípio, Deus criou os céus, a terra e o homem, à sua imagem e semelhança. Não demorou para que este lhe retribuísse a gentileza, e logo adequou Deus aos seus próprios desejos e expectativas. Depois, apareceram o dinheiro, o capitalismo e, enfim, o chamado neoliberalismo. E ninguém nunca mais conseguiu viver feliz para sempre.
Este poderia ser um resumo simplificado da tese de um livro que acaba de ser lançado pela MK Editora, do Rio de Janeiro: "O Dinheiro e a Natureza Humana - Como Chegamos ao Moneycentrismo". É um trabalho que tomou sete anos do economista Ednaldo Michellon, um paranaense de 44 anos formado engenheiro agrônomo e que fez seu doutorado em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Universidade da Califórnia. Ele mora em Maringá, onde dá aulas na Universidade Estadual.
Michellon defende a idéia de que o mundo vive sob um regime em que o dinheiro ocupa o centro de todas as decisões e se tornou a medida de todas as coisas. Não mais o homem (antropocentrismo), como foi depois da Revolução Francesa e do movimento iluminista, não mais Deus (teocentrismo), como era antes disso. A imprevisibilidade da natureza humana e sua inclinação inata à cobiça adubaram um terreno já propício para que germinasse esse fruto. Enfim, o ser humano, antes no controle de sua condição social, acabou subjugado por sua própria invenção.
"O homem não está mais com Deus, como estava no teocentrismo. E o sonho de todos os ateus, cientistas e agnósticos, de que o homem seria a medida de todas as coisas, não mais se verifica, porque hoje a medida de todas as coisas é o dinheiro", disse Michellon ao Valor.
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A análise econômica de Michellon está fundamentada, portanto, em princípios bíblicos e numa macrovisão espiritual - por isso mesmo, original, embora polêmica, do significado do capital. Pela primeira vez, poderia se dizer, misturam-se conceitos sócio econômico e de economia comportamental com verdades da religião cristã ocidental. Michellon afirma que não é socialista nem filiado a partidos políticos, embora tenha militado no movimento estudantil quando jovem. Como cristão evangélico, convertido aos 18 anos, ele conta que costumava ser alvo de preconceito, tanto dentro da igreja tradicional, por suas posições em defesa de uma sociedade mais igualitária, quanto na universidade, por ser cristão.
Michellon mostra-se indignado, em seu livro, com o grau de sujeição dos homens a um elemento que a maioria dos economistas considera "neutro". Para ele, o dinheiro não é neutro. Assume, sim, uma característica abstrata e de tal forma poderosa a ponto de exaltar todo aquele que o possui, ao mesmo tempo que exclui o que dele carece. O "moneycentrismo" - termo que Michellon criou para associar a raiz vocabular do fenômeno à sua abrangência internacional - ganha espaço amplificado a partir da queda do muro de Berlim, representação da derrocada das utopias socialistas e da supremacia do capitalismo e do neoliberalismo como maestros globais. O capitalismo é esse solo fértil onde germina bem "a banda podre da natureza humana", diz o economista. "A cobiça é inerente à natureza humana e a somatória de cobiças individuais resultou no capitalismo. O capitalismo acabou fazendo com que a cobiça seja uma qualidade, e não um pecado”.
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Na primeira parte de seu livro, Michellon interpreta três paradigmas econômicos: o do equilíbrio, o da dinâmica contraditória e o da instabilidade. É um resumo do pensamento econômico desde seu nascimento. Em seguida, vem uma análise da natureza humana, em que ele contesta noções sociológicas como a do mito do bom selvagem, de Rousseau, que diz que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe; ou a doutrina da tábula rasa, na qual o homem nasce como uma folha de papel em branco e pode-se escrever o que quiser nela. Para o economista, "todo ser humano é formado pelo mesmo hardware, mas em softwares diferentes. Todo ser humano é igual em qualquer lugar do mundo. Tive o privilégio de ter gêmeos idênticos. Eles têm o mesmo DNA, o mesmo ambiente cultural, mas são absolutamente diferentes", exemplifica.
Finalmente, o autor tenta propor uma nova maneira de lidar com a supremacia do dinheiro, para que se alcance o que ele chama de democracia solidária. Para isso, seria necessária uma segunda Reforma Protestante, um novo Lutero. Voltar aos ideais e à forma de viver singela e altruísta da igreja cristã primitiva. "A economista Rosa Luxemburgo chamava isso de socialismo primitivo", afirma Michellon. "É uma sociedade em que o ser é mais importante que o ter, o caráter é mais importante que o carisma e os relacionamentos mais importantes que a ética do desempenho”.
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Para mostrar que o apego ao dinheiro é tema "tão perene quanto humano", Gianetti seleciona uma série de frases do pensamento clássico, “cristão” e moderno para ilustrar que não é recente "a paixão imoderada pelo dinheiro", nem "o culto do 'deus visível' que 'ata e desata vínculos sagrados, abençoa o amaldiçoado, doura a lepra, honra ladrões, faz a viúva anciã casar de novo' (Shakespeare, em 'Timon de Atenas'
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"Você olha para todo lado e vê as pessoas se rendendo à teologia do dinheiro. A teologia da prosperidade deveria ser chamada de teologia 'moneycentrista'. No Antigo Testamento, prosperidade era a saúde da família, do gado, das colheitas. A prosperidade tinha a ver com vida saudável. Hoje, prosperidade é poder consumir. Seria melhor chamar isso de teologia 'moneycêntrica"', sugere Michellon.
Essa vocação para dobrar-se a bezerros de ouro e conferir um aspecto sagrado àquilo que é material não é novidade. Está descrita já no Gênesis, no episódio em que os filhos de Israel provocam a ira de Deus e de Moisés ao se afastarem do ideal monoteísta, preferindo o palpável e o imediato. Para Ricardo Bitun, professor de sociologia jurídica e sociologia da religião na Universidade Mackenzie, o conceito de mercado entrou na religião ocidental “cristã” justamente porque assumiu esses atributos divinos. "Quando falamos do mercado, falamos assim: o mercado está agitado, está nervoso. Damos uma identidade e personalidade a alguma coisa invisível, mas que se faz presente e real. Ora, quem era invisível, mas real? Era Deus. Quem era infinito? Deus. Hoje, o dinheiro e o mercado é que dão essa sensação de infinitude”.
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A única força que poderia voltar-se contra isso é a religião. E a religião deixou-se contaminar. "Essa resistência hoje foi minada principalmente por um grupo chamado neopentecostal, representado no Brasil, entre outras, pela Igreja Universal do Reino de Deus. ", afirma Bitun. [Procurada, a igreja preferiu não se manifestar, mas enviou um exemplar do livro "Vida em Abundância", em que o bispo Edir Macedo apresenta passagens bíblicas que prometem bênçãos materiais a todo o que crê.]
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"[O sociólogo alemão] Max Weber disse que na modernidade há um desencantamento do mundo, o mundo místico se extingue e se volta totalmente à ciência. Hoje, as pessoas estão buscando o reencantamento. Estão voltando à religião, ao misticismo oriental, você vê o sucesso de livros como 'O Monge e o Executivo'. Isso faz parte desse reencantamento. As pessoas estão desejando isso, algo que fuja um pouco do racional”. Ao se depararem, dentro da igreja, com uma filosofia consumista, o resultado pode ser a desilusão. E um retorno ao que Weber chamava de "mãos gélidas e cadavéricas da ciência".
Para o professor do Mackenzie, uma segunda Reforma ou o retorno aos princípios dos primeiros cristãos seria uma forma de restabelecer utopias perdidas. "A grande utopia cristã é que haverá novos céus e uma nova terra. Essas igrejas chamaram essa utopia aqui para a terra. Por que esperar pela chegada do grande reino, pela segunda vinda de Cristo? Vamos realizar a utopia agora”. Na prática, é isso o que significa servir a dois senhores.
Marília de Camargo César
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